Nem Corrêa -Uma lenda do Bugre - Marcos Antonio Corrêa


Casarão no Bugre. Dia de lidar com porco. Presença da Vera
Pascoalino - Foto: Acervo de Vera Pascoalino
Escrever sobre o próprio pai certamente não é tarefa fácil. Homem de muita qualidade e obviamente falhas. No entanto, insignificantes para seu caráter, desenvoltura e ética. Óbvio, teimo em lembrar-me do homem perfeito, calmo, tranquilo e paciencioso que foi durante toda sua vida.
Meu pai não encontrou outro motivo para viver, além de ajudar sua família a ser mais. Dizer que trabalhou duro, acordava cedo e apenas a noitinha se dirigia para cama, com o cansaço do dia, é pouco.

Minha mãe para ele era Tiô! Era assim que a chamava por toda vida. Uma vida de partilha e de muito amor. Óbvio, com as discussões de sempre de um casal, mas sobretudo amor e partilha, até mesmo nos bicos feitos de um para com o outro.

Varias são as lembranças desse homem magnifico. Entre tantas, tocar o gado do Bugre de cima para o Bugre de baixo é sempre uma grata lembrança. Nós enquanto crianças, criados na roça, a ideia de ser vaqueiro é algo desejado. E lá se punha ele, num cavalo amarelo, eu numa égua velha, mas devidamente arreada. Não sei se ajudava muito, mas éramos nós dois que nos colocávamos na estrada. As vezes tocando, dez, vinte ou 30 cabeças de gado. O gado era tão manso que parecia sozinho saber o caminho. Eu a frente e ele atrás. Isso acontecia desde sete ou oito anos de idade.

Quando nascia bezerrinho no sitio do Bugre de baixo, íamos de charrete buscar o vitelo. Vinha atrás da charrete, amarrado, com sua mãe vaca babando de brava atrás. Mas vinha. As vezes minha mãe acompanhava. Numa dessas, já noite, vínhamos de charrete com o bezerro atrás e a vaca acompanhando. Por ser noite escura como um breu, minha mãe não percebeu o gado na propriedade do Seu Alcides Luiz na estrada, bem em frente, após passar a capela, a casa do Valdo hoje. Meu pai vinha atrás a cavalo. Eu mais Mãe na charrete. Sei que uma das rodas subiu num boi, o mesmo rapidamente se levantou. A charrete tombou, me jogando juntamente com minha mãe estrada afora. Foi um voo rasante. Graças a Deus nada de grave aconteceu e só serviu para darmos muita risada, depois de constatarmos que principalmente, o bezerrinho estava bem.

Noutro momento, um boi bravo na propriedade do Sr. Daniel Martins Romeira pegou meu pai de jeito. Derrubou do cavalo e não sei como não aconteceu coisa pior. Ficou bastante machucado e forçosamente, teve de tirar uns dias de folga, o que para ele era um calvário. Ficar vendo o tempo passar não era com ele.

Morar no sítio é uma riqueza. Mas também braveza. Muitos balaios de milho descascados por dia, tratar dos porcos, do gado e muito mais. Meu pai sempre trabalhando na roça. Começo dos anos 1970, poucos tratores existiam na região. O ato de arar  terra era feito com burro. Meu pai tinha uma mula amarela e uma égua preta. Coitadas. Eram elas que aravam boa parte dos quase 07 alqueires do Bugre de cima e os 10 do Bugre de baixo. Hoje, os mais novos não imaginam como é arar uma terra com arado de madeira, andando tanto quanto o burro atrás. Fazendo força descomunal. Isso é trabalho e trabalho muito duro.

Tínhamos café no Bugre de cima, morto com a geada de 1975, onde boa parte foi transformado em pasto, mas a parte superior, mais próxima a Br 153, ainda se plantava milho e arroz. Meu pai sempre o protagonista dessas ações. Que homem forte, grato e paciencioso.

Semana de quermesse no Bugre. Nessa foto com Gonçalo Araujo.
Momento onde todos se reuniam para fazer acontecer a grande festa
Foto: Acervo de Vera Pascoalino - Foto: Desconhecido
Ainda tinha as festas da Capela. Nesse período, agosto, quando elas aconteciam, os dias que antecediam os festejos, eram lá que passava os dias, juntamente com outros: Gonçalo, José Araujo e outros. Montar e desmontar barracas. Matar porcos, ajudar a comunidade produzir umas das mais festejadas e imperdíveis quermesses da região. Os homens aproveitavam esses dias para jogar truco. Era um “trupé” só. Mas que coisa boa.

Não percebíamos que tudo isso nos dava a identidade que temos hoje. Uma construção.
Entregar o leite em Ribeirão do Sul então era uma façanha. Ele e minha mãe, cedinho, acordavam, tomavam café juntos, ligavam o rádio no Zé Bétio e lá ficava aquele homem mandando jogar água em quem ainda estava dormindo. Essa era a estratégia deles para me acordar e ir para  escola. Primeiramente no Cascavel e depois em Ribeirão 
do Sul. Que lembranças, onde os olhos marejam.


Sei que muitos tem ainda na cabeça sua imagem na charretinha entregando leite de casa em casa. Sorrindo, fazendo suas piadas e tudo mais. Esse era meu pai.

Minha mãe, no começo  da década de 1980, mostrava desejo de mudar para a cidade. Meu pai não gostava muito da ideia, mas mudamos. O casarão veio abaixo e aquela casa em frente a escola, onde agora é o consultório dentário do Luiz, era nossa casa. Construída com os tijolos do antigo casarão. Isso se deu em final de 1983. De lá, todo dia cedo, vinha tirar leite e continuar a fazer o que mais gostava: trabalhar. Sempre trabalhou. Muito.

Num desses dias, sentiu uma dor no peito. Teimou em continuar trabalhando. A dor aumentou e não teve jeito. Teve de ir embora. Foi ao médico, na Santa Casa de Salto Grande. Ficou por lá. Dr. Asdrubal deu o diagnóstico: meu pai havia tido um infarto. Foi medicado, ficou por lá uns dois dias e voltou para casa.

No dia 14 de novembro de 1985, meu pai partiu. Uma semana depois de ter tido o primeiro infarto. Estava na praça e foram me chamar. Cheguei com meu pai morto, estendido na cama. Minha mãe chorando muito. Não sei como tive a frieza de tudo encarar. Ir atrás de todos os detalhes de enterro para um pai, tanta burocracia. Mas fui eu que fiz. Nesse momento não chorei. Tinha claro que devia manter a calma. Corri atrás de tudo. Minha irmã trabalhava em Itapevi. Chegou no outro dia cedo. Que tristeza. Sei que meu primeiro choro foi quando Tio Zé, que mora até hoje no Bugre de baixo chegou. Quando chegou a hora de depositar o corpo no cemitério. Meu Deus. Que coisa. Creio ser o pior momento de toda vida, de cada um de nós que já tenha passado por isso.

No dia 15 de novembro de 1985 meu pai foi enterrado. A tarde. Era um dia significativo para mim. Jânio Quadros disputava a prefeitura de São Paulo, juntamente com Fernando Henrique Cardoso, pelo PMDB e Suplicy pelo PT. Mas naquele dia, isso foi um detalhe. Meu pai partia para continuar vivendo em todos meus dias.

Pé de Jabuticaba em plena produção até hoje.
Plantado por ele. Foto: Marcos A Corrêa
No sítio que voltei a morar desde final de 2011, de onde saí em 1983, várias são suas lembranças. Dois pés de jabuticabas e o coqueiro que plantou. Plantou, edificou e viveu. Para mim tem o significado de sua presença física ainda comigo. De certa forma é.


Era bem pequeno e lembro quando meu pai
plantou esse pé de coqueiro. Deve ter mais de
40 anos - Foto: Marcos A Corrêa
Meu Pai, Nem Corrêa, Vera Pascoalino e Dona Hortência
Ainda no casão, no Bugre - Anos 1970
Chavão dizer que pai é herói. Mas me permitam repetir. Um homem grandioso. Bondade em pessoa. Que seu espirito de humanidade permaneça sempre entre nós

Comentários

  1. Linda homenagem ,Marcos!Mere ida ,pois seus pais eram dois lideres religiosos da comunidade do Bugre

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    1. Muito obrigado Maria Alice!!! Vamos relemrelembrar nossas origens!!!

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